A Cannabis Medicinal tem ganhado destaque no campo da saúde como uma alternativa eficaz e menos invasiva no controle da dor. Nesta entrevista, o Dr. José Wilson, ortopedista formado pela Faculdade de Medicina da USP/SP, especializado em dor crônica e medicina esportiva e Vice-Presidente da APMC, compartilha sua trajetória, insights sobre o uso terapêutico da cannabis e os desafios e avanços no campo da medicina canabinoide.
Após anos de experiência com pacientes idosos e atletas de elite, o Dr. José Wilson percebeu uma curiosa semelhança entre esses dois grupos aparentemente opostos: dores crônicas, distúrbios do sono, ansiedade, depressão e abuso de medicamentos eram desafios comuns. Essa constatação o motivou a buscar uma abordagem mais integrativa e personalizada no cuidado ao paciente.
E foi um contato com Ian Guedes, fundador da Associação Cura, que despertou seu interesse pela Cannabis Medicinal como alternativa terapêutica.
“Minha curiosidade me levou a estudar a Cannabis Medicinal e seu funcionamento. E foi aí que me encantei, porque ela combinava perfeitamente com minha visão de oferecer um tratamento mais integral aos pacientes”, conta o Dr. José. “Descobri que com uma única substância era possível tratar diversos sintomas, como melhorar a qualidade do sono, aliviar a dor e processos inflamatórios, tudo com menos efeitos colaterais”.
Essa trajetória de profundo estudo sobre o assunto teve como destino a APMC. Em um congresso universitário na Faculdade de Medicina do ABC, onde ele apresentou os benefícios da Cannabis no esporte conheceu alguns dos fundadores, que acabaram o convidando para integrar a Associação.
O desafio da dor: subjetividade e complexidade
A palavra "dor" carrega um significado histórico profundo, originando-se da deusa romana Poena, associada à punição e retribuição como ajudante de Nêmesis. Essa etimologia revela como, ao longo do tempo, a dor foi frequentemente vista como uma forma de castigo ou sofrimento inevitável em diferentes culturas.
No entanto, a dor vai muito além dessa visão histórica. Ela é uma experiência única e subjetiva, manifestada de maneiras distintas por cada indivíduo. Sua percepção é amplamente influenciada por fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais, tornando o entendimento e o manejo da dor um desafio complexo e multifacetado.
"Existem culturas que aceitam a dor como parte da vida e a encaram de maneira mais natural, enquanto outras a veem como sofrimento ou punição. Uma senhora japonesa de 80 anos, por exemplo, pode ter uma artrose severa e ainda assim seguir com a vida. Já uma senhora italiana pode expressar o mesmo nível de dor de forma muito mais enfática (risos). As culturas enxergam a dor de maneiras diferentes”, explica o Dr. José. “Além da cultura, o ambiente em que a pessoa vive também influencia. Quem tem apoio familiar e amigos lida melhor com a dor, mas isso também é subjetivo porque tem pessoas que preferem passar por esse momento sozinhas. Não tem regra, cada paciente reage de forma única, pois a percepção da dor é multifatorial.”
A dor nociplástica: um desafio emergente na medicina
A dor nociplástica, definida em 2016, é um dos maiores desafios da medicina moderna. Diferente da dor nociceptiva (lesões teciduais) e da neuropática (danos nos nervos), ela não apresenta uma causa física evidente, mas é percebida pelo paciente. Sem exames laboratoriais que a identifiquem, o diagnóstico é clínico.
Essa condição, comum em doenças como fibromialgia, enxaquecas e síndrome do intestino irritável, é difícil de diagnosticar. Segundo o ortopedista, “o diagnóstico (da fibromialgia) é clínico, baseado na conversa com o paciente, nos padrões de dor e nas comorbidades associadas, como fadiga, distúrbios do sono e depressão.”
A dor nociplástica raramente ocorre de forma isolada, sendo frequentemente sobreposta a outros diagnósticos, como enxaqueca, síndrome do intestino irritável e fibromialgia. O principal desafio dessa condição está no sistema nervoso central, que regula a percepção e a modulação da dor.
Em pacientes com dor nociplástica, ocorre um desequilíbrio na produção de substâncias relacionadas à percepção da dor. Neurotransmissores e peptídeos que amplificam a dor aparecem em maior quantidade, enquanto aqueles que a modulam e reduzem estão em níveis mais baixos. Essa alteração na química cerebral resulta em uma desregulação no processamento dos estímulos dolorosos, fazendo com que estímulos comuns sejam interpretados como intensamente dolorosos.
Esse desequilíbrio no sistema nervoso central explica por que a dor nociplástica é tão complexa e desafiadora de tratar. Compreender esse mecanismo é essencial para desenvolver abordagens terapêuticas mais eficazes e individualizadas e o uso da Cannabis Medicinal tem ganhado destaque como uma alternativa eficaz no manejo dessa condição.
Os avanços no controle da dor com Cannabis Medicinal
“Bom, o primeiro ponto que a gente tem que esclarecer é que, quando falamos de Cannabis Medicinal, o termo é muito genérico. Quando você pega um extrato integral de Cannabis, estamos falando de cerca de 600 substâncias diferentes. Então, a Cannabis Medicinal é como um baú”.
Quando falamos sobre o uso da Cannabis Medicinal no controle da dor, os dois principais compostos em destaque são o CBD (canabidiol) e o THC (tetra-hidrocanabinol). Esses são os dois fitocanabinoides mais conhecidos e estudados. O termo "fitocanabinoides" refere-se aos compostos produzidos pela planta, em contraste com os endocanabinoides, que são produzidos naturalmente pelo corpo humano.
O uso da Cannabis Medicinal, seja para dor nociplástica ou outras condições, está diretamente relacionado à existência do sistema endocanabinoide, que embora essencial, é uma descoberta relativamente recente, descrita pela primeira vez há cerca de 30 anos — um intervalo ainda considerado curto na história da medicina.
“A gente tem um sistema respiratório, sistema cardiovascular, sistema digestivo, sistema nervoso. O sistema endocanabinoide é mais um deles, atuando como o equilíbrio de todos os outros sistemas. Ele é como se fosse o maestro de uma orquestra, e os outros sistemas são os instrumentos dessa orquestra. Ele faz essa música sair no tom certo, no compasso correto.
É até uma brincadeira: meu colega médico até fala, ‘Pô, mas serve pra tudo?’ (risos). E de fato, você pode ter um tratamento complementar com a Cannabis para praticamente qualquer patologia", explica.
O sistema endocanabinoide é composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides produzidos naturalmente pelo organismo e enzimas que modulam sua atividade. Os receptores CB1 estão predominantemente localizados no sistema nervoso central, onde desempenham um papel crucial na regulação da percepção da dor. Por outro lado, os receptores CB2 estão presentes no sistema imunológico, sendo responsáveis por modular processos inflamatórios.
A Cannabis Medicinal, especialmente por meio de compostos como o CBD (canabidiol) e o THC (tetraidrocanabinol), interage diretamente com esses receptores, contribuindo para um equilíbrio funcional do sistema. O CBD destaca-se por sua capacidade de modular a inflamação e reduzir a ansiedade, enquanto o THC atua no sistema nervoso central, modulando a percepção da dor. Essa combinação permite um alívio mais amplo e eficaz, frequentemente reduzindo a necessidade de medicamentos convencionais.
“A dor continua lá, mas eu não dou mais tanta importância para ela. A Cannabis promove uma dissociação entre dor e sofrimento, modulando a percepção da dor”, complementa o Dr. José. “De forma básica, a ação do CBD e do THC, em conjunto, alcança esse resultado.”
Além do alívio da dor: Impactos na qualidade de vida
A dor nociplástica vai além do desconforto físico, afetando também o bem-estar psicológico e social. Ansiedade, depressão e distúrbios do sono são comuns entre pacientes, tornando o manejo da condição complexo. O Dr. José destaca: “A Cannabis Medicinal não trata apenas a dor, mas também seus efeitos colaterais, como insônia e fadiga.”
O THC, em doses baixas, atua como um potente indutor do sono, enquanto o CBD ajuda a reduzir a inflamação e a ansiedade. Essa combinação não só melhora a qualidade do sono, mas também reduz a necessidade de medicamentos tradicionais, tornando o tratamento mais leve e eficiente.
“Quando a gente fala de Cannabis Medicinal, falamos também de desprescrição”, explica. “O paciente é capaz de tomar um remédio para diabetes, outro para pressão, um para dor, um para depressão, outro para dormir: uma polifarmácia. Então, quando entramos com um tratamento à base de canabinoides, é muito comum, após algum tempo, começarmos a diminuir a dosagem dos outros medicamentos. Isso é extremamente benéfico, pois menos medicamentos significam menos sobrecarga no organismo também.”
O uso da Cannabis Medicinal pode reduzir a sobrecarga no fígado e nos rins, órgãos que metabolizam grande parte dos medicamentos convencionais. É importante destacar que a Cannabis não substitui completamente os tratamentos alopáticos tradicionais, mas atua como um tratamento adjunto e complementar. Os medicamentos clássicos têm sua importância e, sem eles, muitos tratamentos seriam inviáveis.
No entanto, com a introdução da Cannabis Medicinal, é comum que os pacientes consigam reduzir as dosagens dos medicamentos convencionais ou até eliminar alguns deles. Isso não apenas diminui os efeitos colaterais associados ao uso prolongado de medicamentos, mas também oferece uma abordagem mais equilibrada e personalizada.
"A titulação das doses de Cannabis Medicinal é uma bula extremamente personalizada. Começamos com doses muito baixas e vamos ajustando dia a dia, semana a semana, conforme o feedback do paciente”, esclarece. “Nem sempre aumentamos as doses; às vezes, diminuímos ou combinamos diferentes fitocanabinoides, como óleos integrais ou outras formulações. É um tratamento feito a quatro mãos, que exige diálogo constante entre médico e paciente. Muitas vezes, esse contato é diário.”
O Dr. José ainda compartilha exemplos: “Alguns pacientes dizem: ‘Minha dor melhorou, mas estou com muito sono’; outros relatam: ‘Meu sono está ótimo, mas estou comendo a geladeira inteira’; ou ainda: ‘Fiquei mais ansioso’ ou ‘menos ansioso’. Cada detalhe ajuda a encontrar a dose ideal, que, mesmo assim, não é permanente.”
O futuro da Cannabis Medicinal no Brasil
Para o médico, o principal obstáculo no Brasil é a falta de educação médica sobre o sistema endocanabinoide. "Nenhuma faculdade de medicina ensina sobre esse sistema em sua grade curricular básica, o que cria um desconhecimento que gera preconceito entre os próprios médicos. E não nos pacientes. Os pacientes procuram e é diferente de todas as outras medicações que foram criadas ou descobertas: é de cima para baixo, o médico aprende aquilo, impõe ou fala para o paciente daquela medicação. Com a Cannabis o caminho foi o inverso. Os pacientes descobriram e trouxeram para o médico”.
Então, aqueles que buscam novos tratamentos para seus pacientes devem estudar (e muito). “Ninguém pode falar aqui no Brasil que é especialista em endocanabinologia. Essa especialidade não existe. Isso até juridicamente não pode ser dito - ninguém pode falar que é especialista em Cannabis Medicinal ou especialista em endocanabinologia. Então o que eu sou? Eu sou um ortopedista que trata a dor crônica e que usa o Cannabis Medicinal”, esclarece.
Nos últimos anos, os avanços no entendimento sobre a Cannabis Medicinal, aliados à quebra de barreiras e paradigmas, têm sido notáveis. A cada dia, novas evidências científicas surgem, ampliando o leque de patologias que podem ser beneficiadas por essa abordagem. Condições como dor crônica, náuseas e vômitos relacionados à quimioterapia, esclerose múltipla e epilepsia já possuem suporte científico consolidado para o uso da Cannabis Medicinal.
“O Brasil não está nem um pouco atrás de nenhum país em relação à Cannabis Medicinal - é um polo de conhecimento importante. A Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, por exemplo, é referência internacional nesse campo. E embora ainda limitado, o SUS já distribui óleos de Cannabis para algumas patologias. É um começo, e não há como retroceder.”, analisa.
Além dessas condições já bem documentadas, estudos recentes têm explorado o uso da Cannabis Medicinal em doenças como Alzheimer, Parkinson, outras formas de demência, doenças reumatológicas e autoimunes. A solidez científica cresce a cada dia, abrindo novas possibilidades para sua aplicação em diferentes patologias.
"O que está acontecendo não é o futuro, é o presente. Isso já é hoje, amanhã e depois de amanhã. O que eu espero para o futuro é que os médicos saiam da faculdade conhecendo pelo menos o básico sobre a Cannabis Medicinal, para que não a vejam como uma medicina alternativa. Não tem nada de alternativo”, pontua. “O primeiro relato escrito sobre seu uso é de 2.700 anos antes de Cristo. Ela foi registrada como um anticonvulsivo potente 80 anos antes do primeiro anticonvulsivo clássico, o fenobarbital, que ainda é usado hoje.
Estamos fazendo um resgate. Houve um hiato, nunca por motivo médico, mas por questões políticas e sociais. Nos últimos 20, 30 anos, essa gaveta foi reaberta, e estamos correndo atrás do prejuízo.”
Uma Contribuição para a Medicina Canabinoide
A Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC) conclui o ano de 2024 com a realização do Simpósio Interdisciplinar de Endocanabinologia e Dor, que acontece no dia 7 de dezembro, no campus da FMABC, em Santo André, com opção de participação online.
Com esse simpósio, a APMC não apenas encerra o ano de 2024, mas consolida sua missão de fomentar conteúdo científico de qualidade, atualizado e acessível, promovendo discussões éticas e baseadas em evidências sobre o uso da Cannabis Medicinal.
Programação e Palestrantes de Destaque
09h00 - 10h00: Dr. José Wilson Nunes Vieira de Andrade apresentará "Dor Nociplástica", um conceito emergente que desafia as abordagens tradicionais de tratamento da dor.
10h00 - 11h00: Dr. Gregory Pessoa discutirá "Dor Oncológica", explorando como os canabinoides podem ser ferramentas eficazes no manejo da dor em pacientes com câncer.
11h00 - 12h00: Dr. Pedro Pierro abordará "Dor Aguda", trazendo insights sobre a aplicação de canabinoides nesse tipo de dor, que ainda carece de pesquisas mais robustas.
12h00 - 13h00: Dra. Maria Tereza Jacob na palestra "Canabinoides e Opioides: Amigos ou Inimigos?", analisará a interação entre esses dois agentes no controle da dor e o potencial de reduzir os riscos associados ao uso de opioides.
Encerramento com Deputado Estadual Caio França sobre a "Introdução da Cannabis Medicinal no SUS e a barreira da Dor Crônica"
O evento é gratuito para associados da APMC, que podem garantir sua vaga aplicando o código promocional APMC100 ao selecionar o ingresso. Para não-associados, o simpósio oferece uma oportunidade imperdível de adquirir conhecimento especializado por um valor acessível.